Nem vítima, nem Mártir

pâmela & mariana
11 min readJan 6, 2020

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Edianne Nobre é juazeirense e professora do departamento de História da Universidade de Pernambuco(UPE). Os seus estudos estão no campo da religiosidade e da história cultural, sua tese de doutorado “incêndios da Alma” fala sobre a Beata Maria de Araújo.

1- Edianne quem é a Beata Maria de Araújo para você, e o que te levou estudá-la?

A Beata Maria de Araújo no meu percurso além de ser o meu sujeito de pesquisa, é também uma pessoa que me fez começar a pensar sobre o empoderamento feminino e as questões que as mulheres enfrentam na sociedade e na história. Tanto que a minha ideia de pesquisa, era pautada na constatação de que a beata não existia na literatura sobre Juazeiro. Fiquei, particularmente, bem curiosa sobre essa mulher. Me perguntava: “Quem foi essa Beata que recebeu a hóstia e depois a não se falava mais dela?”. O que me levou a estudá-la foi justamente a ausência dela na historiografia de Juazeiro.

2- Quanto tempo em média levou a sua pesquisa e quais foram os maiores aprendizados do processo?

Aprendi bastante sobre a capacidade de resiliência das pessoas. Ela como mulher pobre do final do século XIX, num povoado em que não tem muita perspectiva, constrói para si uma trajetória muito importante de empoderamento. Comecei a pesquisa em 2004 no segundo semestre da graduação, e terminei no doutorado com a tese “Incêndios da Alma”, recentemente publicada. O trabalho durou dez anos, tive muitas dificuldades no sentido da aceitação da pesquisa, inclusive pela igreja. Eu cheguei a ter alguns enfrentamentos com outros pesquisadores, muitos achavam que o meu trabalho não era relevante, ou que eu deveria ter cuidado. Me propus e fui cuidadosa com relação à análise da trajetória do Padre Cícero, afinal ele não é, e nunca foi, o meu foco da pesquisa, sempre foi a Beata.

3- Você percebe alguma nuance da estrutura machista e/ou da estrutura racista na vida e na repercussão da imagem de Maria de Araújo?

Quando eu penso nesse esquecimento que existe sobre ela, eu reflito sempre em termos da estrutura patriarcal que a gente tem no final do século XIX, mas também no que diz respeito a uma mudança interna da igreja naquele momento. Esse processo de apagamento pode ter tido sim motivações machistas e racistas, mas a principal causa foi o próprio contexto, a história da igreja naquele momento. Claro que não foi fácil para ela justamente porque era uma mulher, negra e pobre então além de tudo também existia a questão social. Ela era analfabeta, vista como uma pessoa ignorante. Cheguei a investigar alguns depoimentos que descreviam ela como cachaceira, negra, como se o termo “negro” fosse de pejorativo, né? É como aparece na documentação. Isso tudo no sentido de invalidar experiência religiosa dela. E considerando esse contexto eminentemente masculino, ao ser retirada da história, quem ganha projeção é o Padre Cícero.

Para mim, não cair nos extremos é bastante importante. O Padre Cícero também não é um vilão nessa história, não é que ele usou o lugar da Beata, acredito que ele é muito mais levado pelos acontecimentos. E nesse contexto ele também vai se apropriando e buscando manter vantagens, a luta dele sempre foi por tentar reaver as ordens sacerdotais, que foram suspensas por acreditar no milagre. Então hoje através de tudo o que eu pude pesquisar, posso dizer que sou totalmente convencida de que ele acreditava no Milagre, e de que ele se colocou em defesa da Beata. Sem dúvidas a condenação dela foi muito maior, mas ele também foi condenado. Até hoje a igreja local tem um processo no Vaticano para rever as ordens sacerdotais dele.

Capa do livro Incêndios da Alma

7- Qual foi o percurso da igreja católica e do Padre Cícero na construção da figura da Beata Maria de Araújo que o imaginário popular tem hoje ?

Vai justamente nesse sentido que a beata não é uma mártir, assim como não é uma vítima. A historiografia divide muito esse papel; ou a Beata é uma mártir jogadora, ou ela é uma coitadinha vítima. Na minha pesquisa eu tento localizá-la no meio do caminho. Ela atuou como alguém que acreditava na igreja, numa vida de santidade e que procurava por isso. É tanto que ela não se retrata nem nega o milagre, e daí vem a condenação da Santa Fé.

É bem claro quando eles condenam ela a esse tipo de reclusão, isso provocaria um apagamento social e na memória da população juazeirense, tanto que hoje em dia poucas pessoas sabem quem foi a beata ou sabem apenas uma história pela metade. Em geral se sabe que ela foi uma mulher, Beata do Padre Cícero e que recebeu a hóstia que sangrou. Mas as pessoas não sabem, por exemplo, que a hóstia sangrou durante mais de dois anos, inclusive quando outros padres ministravam. Ou que ela manifestava outros fenômenos extraordinários. Então você tem aí uma série de outros fenômenos que são descartados pela historiografia e que consequentemente na memória das pessoas também desapareceram.

9- Em determinado momento da sua tese você relata que a história de Juazeiro “começa” a partir do “Milagre de Juazeiro”. Que papel a Beata assume no milagre e como esse papel é entendido pelas instituições?

Dos anos 80 pra cá, quando surgem as pastorais de Romeiros no Juazeiro do Norte a igreja local começa a ver também em Maria de Araújo uma personagem para compor a história e fazer parte do cenário turístico religioso que se criou. Tanto que hoje tem imagem da Beata no museu de cera e um busto dela na capela do Socorro também.

No entanto, se você for para grande massa de juazeirense e de Romeiros perguntar quem foi a Beata Maria de Araújo pouca gente vai saber. Alguns talvez digam que ela foi uma beata do Padre Cícero. Outras pessoas inclusive confundem ela com a beata mocinha. Eu já fui apresentar meu trabalho algumas vezes e as pessoas dizem: “Ah mas você tá falando da beata mocinha”. E eu: “Ah não, é outra pessoa”.

10- Como você percebe a reclusão da Beata Maria de Araújo no final da sua vida. Qual foi o limite entre a “missão” que a Beata entendia ter e os silenciamentos ao longo da história?

Existem muitos santos que são condenados, ou que vivem essa vida de reclusão para justamente poder concluir o percurso de santidade. Eu acho que a reclusão da beata foi coerente com o percurso de santidade que ela construiu ao longo da vida. O meu argumento na tese leva em consideração esse contexto completo. O percurso de santidade é acompanhado pela ideia do sacrifício, e muitos santos também são condenados ou vivem essa vida de reclusão para poder completar o percurso. Então se considerarmos a santidade, ela foi coerente. Maria de Araújo sempre foi muito obediente à igreja, mas também muito obediente a própria fé. Isso mostra para mim uma grande resiliência, ela é uma mulher muito guerreira na verdade. E acredito que se ela tinha alguma missão ela era muito subjetiva, da Beata com a crença que ela tinha, né? Ela também não se auto promove, ao contrário do Padre Cícero. Ela entra realmente de cabeça nessa ideia da santidade mística.

Acervo de museu, um dos poucos registros da Beata Maria de Araújo

É fato que o Juazeiro do Norte se construiu a partir de uma narrativa histórica muito particular, os misticismos que habitavam o Joaseiro no século XIX, ainda permanecem vivos hoje. Um dos que ainda move a cidade é o milagre da hóstia que se fez sangue, responsável por materializar todo o cenário de fé, trabalho e devoção criados sobre a cidade.

O milagre que volta os olhos de Roma para o Juazeiro do Norte é protagonizado durante um ferrenho período de seca no sertão e mudanças paulatinas nas estruturas de influência e poder da igreja Católica. Além das movimentações e tentativa de retomada do poder da igreja, o século XIX também é marcado pelo avanço científico. Os setores tradicionais, começaram a moldar estratégias para manter as movimentações da religiosidade popular sob controle. O Milagre que é considerado por muitos historiadores o marco criador da cidade, foi protagonizado pela Beata Maria de Araújo que hoje, assim como na maior parte da história, é pouco conhecida pelos fiéis. E afinal, quem é essa mulher?

Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, nascida em 24 de Maio de 1862, é filha de Antônio da Silva Araújo e Ana Josefa do Sacramento, pessoas também desconhecidas pelos registros oficiais. Ainda muito jovem, tendo seus pais falecidos, Maria Magdalena começou a trabalhar com artesanato, confeccionando bonecas de pano fiadas à algodão.

Já orfã de pais, por reflexo da sua necessidade e fé, ela começou a frequentar a casa do Padre Cícero onde em pouco tempo passou a residir. Maria de Araújo pertencia a um povo tocado pela fé, ela acreditava que para manter uma relação íntima com Deus não era preciso a interferência de cargos clericais ou mesmo da igreja. Desde a infância manifestava sinais de inclinação às atividades coletivas e espirituais, mas foi apenas com 22 anos que ela adotou os hábitos de freira e passou a ser considerada beata por prática.

O fato mais importante da sua vida, foi o milagre em que a hóstia transformou-se sangue na sua boca. Março de 1889, durante a liturgia ordenada pelo Padre Cícero na capela de Nossa senhora das Dores, a Beata Maria de Araújo recebe na comunhão a hóstia e, logo em seguida, o “corpo de Cristo” (para os cristãos) transforma-se em sangue na sua boca. O mistério continuou a acontecer sucessivas vezes, alguns historiadores apontam que ocorreu entre oitenta e cento e vinte vezes, por aproximadamente dois anos.

O Padre Cícero e a Beata tentaram manter os episódios místicos o mais anónimos possível temendo a reação do clero em Roma, porém a notícia de que, em Juazeiro, Jesus derramava seu sangue, espalhou-se. Deixou o sertão rumo a capital, em seguida o mundo.

Em Juazeiro não era novidade a atuação de populares em atividades religiosas, ou uso dos espaços da igreja para tais. Existiam tensionamentos constantes, pois a Santa Sé em Roma, pretendia resgatar a autoridade e o pleno controle dos cultos católicos, afastando os leigos desta função. Efetivamente se pode afirmar que no início do mesmo século na região do Cariri cearense, assim como em outros lugares do Brasil, era constante a presença de Beatos e Beatas no cotidiano das igrejas.

Com os constantes acontecimentos o próprio Padre Cícero convidou dois médicos e um farmacêutico da sua confiança para analisar o caso, tendo eles presenciado o misticismo várias vezes. Analisaram a hóstia, o sangue, a carne e a beata; até então não existiam explicações científicas para tal fenômeno, e os médicos enfim constataram que se tratava de uma manifestação sobrenatural. Ainda em 1889, aconteceu o que é considerado o primeiro ciclo de romarias, que era destinada ao milagre da hóstia, proferido por Maria de Araújo.

Em Abril de 1891 o caso se intensificou substancialmente após o jornal “O Cearense” publicar o atestado do Dr. Marcos Rodrigues Madeira que relatava com detalhes a ocorrência da transformação de hóstia em sangue, presenciado pelo médico. Para o bispo já parecia ser grave os padres da sua diocese acreditarem em episódios ocorridos com uma mulher que nem mesmo se sabia a origem. Para além disso, o fenômeno foi eleito como místico sem a autorização do Bispo da Diocese.

A quebra de hierarquia se colocou como um primeiro embate questionador do milagre. Dom Joaquim então, declarou ser embuste o sangue da Beata. Para ele, “um milagre é coisa muito séria” e a igreja não admitiria quaisquer manifestações contra a sua vontade, muito menos cultos e romarias sem permissão.

Como são poucos os registros históricos sobre a vida e atuação da Beata Maria de Araújo, não se sabe ao certo em que lugar crédulo ela esteve, mas pode-se afirmar que a Beata tomou para si o espaço de serva das obras de deus acreditando fielmente no milagre.

A igreja então se volta para um processo de análise do milagre a fim de provar para si mesma que os fenômenos do interior do Nordeste não diziam respeito ao plano espiritual entendido ou aceito pela instituição. O bispo do ceará precisava provar para toda a igreja o motivo da sua incredulidade no fenômeno. Formou-se então uma comissão composta por padres de confiança da Diocese. Após o inquérito, concluiu-se que “aquilo que ocorria em Joaseiro não passava de manifestações de fanatismo de pessoas que não conheciam a teologia da Igreja”. Enquanto isso, a crença popular no milagre tomava proporções maiores do que se esperava.

Após três anos, e intensificação das peregrinações, vem à tona a condenação da Santa Fé. O Padre Cícero foi afastado das atividades sacerdotais e excomungado da igreja. Enquanto a Beata descrita nos documentos como uma mulher sem beleza aparente, simples, negra e ignorante, foi submetida a sucessivos interrogatórios que tinham como finalidade encontrar a possível farsa.

De um lado estava a Beata que era analfabeta e desentendida do propósito “oficial” da igreja, de outro doutores em religião, que traziam consigo os conhecimentos letrados e a espiritualidade aceita pelos princípios da igreja. As medidas conduzidas pela fé oficial pesaram “do lado mais fraco”, como diz o provérbio popular. Ao passo que a instituição tentava contornar as movimentações de milhares de romeiros a “Terra Santa”, o Padre Cícero tornava-se sutilmente o protagonista da história e a beata ia sendo afastada das atividades religiosas. Era preciso apagar a fé no misticismo que ela representava para os fiéis. Eram duas abordagens sobre a mesma fé que estavam em jogo.

Durante os inquéritos, sem medo, Maria de araújo respondia os questionamentos dos investigadores e afirmava que os fenômenos faziam parte de uma missão maior. Relatava visões em que Jesus Cristo se fazia presente, narrando inclusive o casamento dos dois. Maria de Araújo chegou a narrar uma visão em que Cristo colocava um anel em seu dedo e anunciava que após aquele casamento espiriyual, ela teria que sofrer em seu amor.

A instituição permanecia dizendo que o milagre deveria ser negado, entretanto o Padre Cicero e a Beata permaneciam afirmando as manifestações acontecidas.

Sobre estes termos Maria de Araújo passa por uma imposição severa que a impede de ficar no Juazeiro. Afastando-se da convivência com o Padre Cícero ela é levada à casa de Caridade do Crato onde seria novamente submetida a interrogatórios e testes. Em Crato os misticismos se repetiram enquanto ela continuamente era submetida a processos de violência. Chegou a ser obrigada a tomar a hóstia enquanto ficava por mais de quinze minutos com a boca aberta rodeada por dezenas de pessoas que assistiam. Destas vezes o sangue não brotou a partir de então existiam testemunhas para legitimar também o discurso da igreja, vista como mentirosa, condenada à reclusão, encarada como louca e afastada das atividades espirituais em comunidade.

Os registros não guardam os detalhes da vida de reclusão de Maria, grande parte dos documentos do processo julgado pela igreja foram queimados. Ela passou os últimos anos de sua vida enclausurada até falecer em 1914. . Não bastando todo o desgaste de violências ocorridos nos seus últimos dias de vida, 17 anos após o falecimento o seu túmulo que ficava na Igreja de Nossa Senhora do Pérpetuo Socorro em Juazeiro foi violado, seus restos mortais foram saqueados e nunca mais encontrados.

Com o protagonismo do milagre direcionado ao Padre Cícero, a maioria dos romeiros hoje sequer conhece a Beata. Não existem muitas imagens de Maria de Araújo, ela não é reconhecida pelo povo.Em 17 de Janeiro, os seus poucos devotos lembram e celebram o espírito da mulher que mesmo distante das ordens oficiais se dispôs a viver uma vida dedicada a coletividade, ao passo que tinha o seu protagonismo silenciado pelas estruturas.

Foi a vivência da religiosidade popular que santificou a experiência vivída no Juazeiro. Uma história cercada de misticismos e intervenções institucionais da igreja católica ao longo da história. Fruto do mais longo estudo sobre o tema o livro “Incêndios da Alma” evidencia as nuances da história que não foram contadas.

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pâmela & mariana

ouvindo o sussurro das ancestrais